Introdução

Elsa Villon
3 min readJan 4, 2024

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Tudo começou em 1963, com seu nascimento, na festa litúrgica da santa que a batiza: Nossa Senhora da Abadia. Nome que nunca vi igual, nem antes e nem depois dela.

Abadia, segundo o dicionário, é o substantivo feminino para o mosteiro dirigido por abade ou abadessa. Sacro. Sagrado. Vir do ventre de Abadia me torna mais ou menos pecadora pelas minhas falhas? Difícil dizer.

Abadia Nunes da Silva nasceu em São Caetano do Sul, região do Grande ABC paulista, no dia 15 de agosto de 1963. Para quem acredita, era uma típica leonina: gostava de ser o centro das atenções, de dourado, de brilho, de estar em evidência. Era uma excelente contadora de histórias, dona de uma oratória invejável. Filha de Antonia Onofra da Silva e José Nunes da Silva. Irmã de Jorge, Luzia, Augusto, Sônia, José Roberto. Mãe de Rafael, Ligia, Luiza e, claro, minha mãe.

Dos 20 aos 57 anos, a propósito, esse foi o seu principal ofício: mãe. Infelizmente, a sociedade não reconhece como um trabalho de tempo integral, 24 x 7, sem benefícios, salário, carteira assinada ou férias. Sem direito à aposentadoria. Ser mãe é trabalhar o resto da vida por tempo indeterminado. E assim ela fez durante 37 anos, quase 2/3 da sua passagem por este planeta com gravidade 10.

Além de mãe, ela era faxineira, cozinheira, professora, guardiã de animais — os nossos e os da minha avó — , sem contar empreendedora. Me diga alguma coisa e eu te digo se minha mãe se aventurou a vender. Me diga um prato e eu te digo se ela já cozinhou ou, se ao menos, não tinha a receita. Sua coleção de receitas transcendeu sua vida e seu legado são cadernos, livros e encadernações que vão desde de recortes da Ofélia, passando por receitas tradicionais de família, como a passa (da família do meu pai) ou o pão da Tia Cerise (essa veio do lado dela). Poderia chutar que ela colecionava milhares de receitas e que eu nunca comi um porco agridoce melhor que o que ela fazia.

Outra característica da minha mãe era a sua paciência. Ela era a mãe da paciência. Calma, serena, mesmo nas circunstâncias mais adversas. Isso não quer dizer que ela era passiva, ao contrário: se precisasse entrar numa guerra para defender as crias, ela virava uma leoa. Mas conosco ela era bem calma a maior parte do tempo. Não apenas calma, mas otimista. Eu cheguei a acreditar que ela fosse inabalável: nada tombava aquela mulher. Nem a morte, nem o rompimento, nem a doença, nem a miséria, nem a solidão, nem a fome. Não existia barreiras para a fé dela. Minha mãe era muito devota em deus (pode escolher o de sua preferência, ela também foi de várias religiões). Nos melhores e nos piores momentos, ela orava.

Em certa feita, meu irmão ainda bebê, ela sozinha com ele doente, pediu a deus que ela tivesse forças: se fosse a vontade divina, que ela pudesse suportar a dor de perdê-lo para a pneumonia. Esse era o tipo de oração dela, não exatamente novenas ou preces milenares. Um claro pedido para ter discernimento para acolher as coisas que não podia modificar. Acho sábio e sensato da parte dela, vale enfatizar.

Minha mãe queria conhecer o mundo: pular de pára-quedas, viajar de balão na Turquia, visitar Paris na Primavera, conhecer as ilhas gregas e Machu Pichu. Não deu tempo. Sem salário, sem férias, sem benefícios, era mãe em tempo integral e nunca voou de avião.

Esse livro é uma tentativa de contar todos os seus feitos em contos. As histórias que ela contava dela e as que vivemos juntas. Uma singela homenagem a melhor revisora que tive na vida. Dessa vez, o trabalho vai para outra pessoa, Dona Abadia, mas eu espero que você goste. Serei sucinta, mas sem deixar de lado os detalhes que te tornam única. A primeira e única Abadia da minha vida.

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